Sabedoria

Com o livro da Sabedoria, encon­tramo-nos no fim do AT, num mo­mento fun­damental do diálogo entre o judaísmo e a cultura grega. Neste sentido, ele é um bom predecessor do NT. Por isso, a sua língua é o grego e pertence aos chamados livros Deuterocanónicos, por se encontrar apenas na Bíblia grega e, conse­quentemente, não entrar nem no Cânon judaico (da Bíblia hebraica) nem, mais tarde, no Cânon das igrejas protestantes.


AUTOR E DATA

Atribuído a Salomão por algumas versões e manuscritos antigos, o livro da Sabedoria é certamente da responsabilidade de um autor anónimo bem distante de Salomão no tempo, que não poderá situar-se para além do ano 50 a.C. (entre 150 e 50 a.C.). Isso manifesta-se nos indícios de carác­ter literário e histórico. A atribuição do livro a Salomão, nos cap 6-9, e só implicitamente, deve-se ao facto de a tradição bíblico-judaica situar este rei na origem do género literário sapiencial, o que faz dele o Sábio por excelência (7,1-21; 8,14-16; 9; ver 1 Rs 3,5-9; 5,9-14; 10,23-61). Muito provavel­­mente, o autor foi um judeu de Alexandria, no Egipto – onde residia uma forte comu­nidade judaica – que utilizou a pseudonímia. Como fruto dessa comuni­dade, o livro está marcado culturalmente por uma forte influência helenista.

O autor conhece, por um lado, a História do seu povo e a fé num Deus sem­pre presente e pronto a intervir nela; e por outro, sente a forte atracção que as principais filosofias helenísticas e as diversas religiões exercem na vida dos seus irmãos de raça e de fé. Por isso, tenta estabelecer o diálogo entre fé e cultura grega (6-8), de modo a sublinhar que a sabedoria que brota da fé e conduz a vida dos israelitas é superior à que inspira o modo de viver dos habitantes de Alexandria. Com este livro, o autor dirige-se, pois, a dois destinatários diferentes: aos judeus de Alexandria, directa ou indirectamente perseguidos pelo paga­nismo do ambiente; e aos próprios pagãos, sobretudo aos intelectuais helenis­tas, mais abertos à cultura hebraica, intentando, porventura, convertê-los ao Deus verdadeiro.


ESTRUTURA E CONTEÚDO

Esta proposta de vida, assente na revela­ção de Deus, manifestada na História e no mundo criado, é desenvolvida em três partes:

I. A Sabedoria e o destino do homem (1,1-5,23): descreve-se a sorte diversa dos justos e dos ímpios, à luz da fé; sendo a justiça imortal (1,16), Deus reserva a imortalidade aos justos.
II. Elogio da Sabedoria (6,1-9,18): origem, natureza, propriedades e dons que acompanham a sabedoria (7,22-8,1), como personificação de Deus (ver Pr 8; Sir 24); elogio da sabedoria, elevando-a acima dos valores mais apre­ciados neste mundo.
III. A Sabedoria na História de Israel (10,1-19,22): descreve-se a pre­sença e a actividade da sabedoria em toda a História do povo de Israel com espe­­cial incidência sobre o Êxodo (11,1-19,17), em forma de midrache e de con­tras­tes, que caracterizam o estilo desta terceira parte (11,4-15,19; 16,1-4.5-14.15-29; 17,1-18,4; 18,5-25; 19,1-21). Mas o autor também mani­festa conhe­cimentos profundos de outros livros: Génesis, Provérbios, Ben Sira e Isaías. Merece um relevo especial a brilhante polémica contra a idolatria.

O estilo geral da obra inclui recursos estilísticos hebraicos (paralelismo, parataxe, comentário midráchico, alusões a motivos do AT) e gregos (abun­dância de sinónimos, adjectivação rebuscada, aliterações, rimas e jogos de palavras). Tudo isto faz do livro da Sabedoria um modelo do grego da Bíblia dos Setenta.


TEOLOGIA E LEITURA CRISTÃ

Muitos judeus seriam tentados a se­guir o cami­nho dos “ímpios” e a renegar a sua fé, tanto pela perseguição ou pelo ridí­culo a que eram sujeitos por causa das práticas dessa fé, como pela vida moral fácil que os alexandrinos levavam, em contraste com as exigên­cias apontadas pela Lei (2,1-20). Mais que uma categoria ou classe de pes­soas, os “ímpios” – que são o contraponto dos “justos” ao longo de todo o livro – per­sonificam um estilo de vida oposto e hostil, por vezes, ao que deveria constituir o do judeu crente. Esta temática pode caracterizar-se pela ideia de justiça, nos seus três sentidos bíbli­cos: como vir­tude da equidade, isto é, dar a cada um o que lhe per­tence; como cum­pri­mento perfeito da vontade de Deus; e, final­mente, como força ou acção de Deus, que nos livra de toda a espécie de mal.

O autor resolve o problema da felicidade dos justos e infelicidade dos ímpios pela retribuição ultra­ter­rena para os justos. Face a um am­biente reli­gioso, filosófico e cultural, que apresentava um estilo de vida material e formal­mente atraente, era imperioso dar razões fortes da fé, mesmo em ter­mos racionais e vitais, para que ela não aparecesse inferio­rizada como pro­posta ou estilo de vida. Por isso o autor mostra excep­cio­­nais conhecimentos de toda a Bí­blia e da vida cultural helenística.

Uma segunda ideia teológica fun­damental deste livro é a personi­fi­ca­ção da Sabedoria divina. Enquan­to, para os gregos, a sabedoria era um meio para chegar ao conhecimento e contemplação divina, para o autor, ela é uma proposta de vida, um al­guém que está presente em toda a vida e que preside à vida toda; que fala, estimula e argumenta. A sabedoria é assim porque é o reflexo da vontade e dos desígnios de Deus (9,13.17); porque partilha da própria vida de Deus e está associada a todas as suas obras (8,3-4) e tem a ver com o espírito de Deus (1,6; 7,7.22-23; 9,17); é ela que torna a religião judaica muito superior às religiões idólatras (cap. 13-15). Numa palavra, a sabedoria é um outro modo da revelação de Deus; isto é, o próprio Deus actua na História de Israel (cap. 11-12; 16-19) e no mundo criado por meio da sua sabedoria. Ela prefigura o amor e a sabedoria de Deus que culmina em Jesus Cristo, também chamado “Sabedoria de Deus” (ver 1 Cor 1,24.30).

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