Job

A questão da autoria do livro de Job está muito ligada aos modos e momentos se­gundo os quais se terá processado a for­ma­ção deste conjunto literário. Definir a identidade de um autor por detrás da variedade literária que existe no livro, e que mais adiante anali­sa­remos, não será fácil. É provável, no entanto, que o seu autor principal tenha sido um israelita, certamente bom conhecedor do pensamento hebraico tradicional; daí os contínuos paralelismos literários e doutrinais entre este livro e outros da Bíblia. Por outro lado, também conhecia as grandes preo­cupações do pensamento humanista nos países vizinhos da Bíblia. A síntese entre estes dois pólos está muito bem conseguida.


NOME E DATA

A personagem central desta história é que parece não ser uma figura hebraica. O nome de Job só aparece neste livro, em Ez 14,14.20 e Tg 5,11, como uma figura lendária do passado, situado nos tempos patriar­cais e dotado de grande sabedoria. O autor israelita aproveitou tal figura para ela­borar esta obra, do género sapiencial. Isto denota apreço pela sabe­doria uni­versal ou a vontade de reconhecer todos os valores, onde quer que eles se encontrem.

A data do livro é outra difícil questão. Grande parte dos estudiosos situa-o após o Exílio, baseando-se quer na dúvida corajosa face às categorias do pensamento religioso tradicional, quer em certas influências aramaicas sobre o hebraico em que o livro está escrito, quer numa certa abertura ao mundo exterior a Israel, para contrariar o ambiente xenófobo que se vivia em Jeru­sa­lém, depois do Exílio (séc. V a.C.), testemunhado em Esdras e Neemias. Mas há quem pense que o livro poderia ser bastante mais antigo. Argu­men­tos: alguns aspec­tos linguísticos e o tema, que já tinha raízes em reali­zações muito anteriores nas literaturas do Médio Oriente Antigo.


LIVRO, TEMA E TEXTO

O livro de Job constitui, no contexto da Bíblia, um dado bem característico e original. Em primeiro lugar, porque enfrenta a questão da experiência religiosa pessoal como um objecto de reflexão e porque o faz com uma profundidade humana e um dramatismo dignos do melhor humanismo e da mais requintada arte literária; em segundo lugar, porque nem representa muito directamente a linguagem teológica mais carac­terística do Antigo Testamento.

O facto é que este livro se impôs como um dos mais elevados momentos literários da Bíblia; e, para a História da teologia, da filosofia e da cultura, até aos dias de hoje, ficou a ser um verda­deiro marco miliário da tomada de consciência dos dramas da experiência humana.

A importância que este livro assumiu na Bíblia e nas religiões bíblicas – Judaísmo e Cristianismo – veio-lhe também, em grande parte, do facto de nele se exprimir um dos temas máximos da cultura e da literatura huma­nist­as do Médio Oriente Antigo. É a questão do sofrimento e das suas reper­cussões, quer directamente na experiência de quem sofre, quer indirec­tamente na interacção que se produz entre as concepções morais e outras categorias religiosas fundamentais, tais como sofrimento e doença, pecado e castigo, santidade e felicidade. Enfim, é o problema de saber se existe alguma cor­re­lação justa ou lógica entre a maneira honesta como se vive e a maneira como a vida nos corre. Nos tempos bíblicos mais antigos, o Egipto, a Meso­potâmia e Canaã deixaram-nos exímios exemplos literários deste esforço de reflexão. É entre eles que o livro de Job encontra a sua base e se destaca como valor de primeira grandeza.

A maior parte do livro está escrita num hebraico de grande qualidade literária, que levanta, pelo seu estilo e vocabulário originais, algumas difi­cul­dades de tradução. É natural que os simples leitores de uma Bíblia o notem ao comparar várias traduções e verificar como estas assinalam difi­cul­dades de tradução de vários termos e passagens. Muito se tem estudado sobre ele e muito há ainda a estudar até se poder atingir a melhor com­preensão, tanto do vocabulário como das subtilezas de construção sintác­tica.


GÉNERO LITERÁRIO, ESTRUTURA E FORMAÇÃO

Do ponto de vista literário, o livro de Job apresenta-se dividido em duas secções princi­pais, que se notam bem pela forma, pelo estilo e pelas ideias. A secção inicial e a final, am­bas escritas em prosa, apresentam-nos a personagem central do livro, a fi­gura de Job. É o que, no esquema proposto mais adiante, se chama pró­logo e epílogo biográficos. No prólogo, Job aparece bem situado numa vida honesta e simultaneamente feliz; mas, depois, passa por experiências de des­graça que levantam a questão de saber se ele era, de facto, ou se conti­nuou ou não a ser honesto; no epílogo, a sua situação aparece, por fim, intei­ra­mente restaurada.

Esta evolução na acção dá importância à segunda secção do livro, que cons­titui a sua maior parte. Toda ela é uma discussão acesa sobre os pro­blemas suscitados pelo apa­rec­imento do sofrimento e de grandes desgraças na vida de um homem que não tinha culpa nem pecado. Esta parte em poe­sia é o essencial do livro, embora assente na situação de vida descrita pelo texto em prosa. O modelo literário é inspirado possivelmente nas discussões que se faziam nos ambientes culturais da época. Cada amigo apresenta um tipo de argumentação, e a discussão decorre, sem que Job, apesar do seu estado de sofrimento, se mos­tre desfalecido. Até para esclarecer as relações com Deus é utilizado o mesmo esquema. Numa intervenção final, Deus res­ponde a todas as discussões anteriores. O livro apresenta-se, assim, como um autêntico tri­bunal de consciência, para o qual o próprio Deus é citado e onde toma assento.

Muitos estudiosos pensam que estas duas secções podem não ser da mesma época nem ter sido escritas pelo mesmo autor. A primeira é mais popular; a segunda é claramente mais complexa e profunda. Além disso, a parte desig­nada como “Discurso de Eliú” (32-37) apresenta claros indícios de ter sido acres­centada posteriormente, quanto mais não seja porque ele não aparece na lista dos amigos que, segundo a narrativa inicial, foram ter com Job para o consolar. Estes aspectos da formação e da estrutura do livro são indícios de que a sua redacção pode ter tido uma história razoavelmente com­plexa.


DIVISÃO E CONTEÚDO

Propomos o esquema seguinte:

I. Prólogo biográfico: 1,1-2,13;
II. Primeiro debate: 3,1-14,22;
III. Segundo debate: 15,1-21,34;
IV. Terceiro debate: 22,1-27,23;
V. Elogio da sabedoria: 28,1-28;
VI. Monólogo de Job: 29,1-31,40;
VII. Discurso de Eliú: 32,1-37,24;
VIII. Intervenção de Deus: 38,1-42,6;
IX. Epílogo biográfico: 42,7-17.

Os números VI, VII e VIII podiam constituir uma roda dialogal final, mas dotada de um espírito razoavelmente diferente dos três primeiros debates. Por isso, o elogio da sabedoria (28) poderia estar a servir de separador e tran­­sição.


TEOLOGIA

O livro de Job é essencialmente uma obra de reflexão e medi­tação; é mesmo um espaço para levantar questões ainda hoje dramá­ticas. Chamar teologia ao seu pensamento pode até fazer crer que ali se apresenta uma catequese ortodoxa e tranquila. E não é o caso. No entanto, podemos servir-nos da palavra teologia, enquanto aqui é focado um con­junto de pro­ble­mas, cuja solução acaba por ir desembocar, em última análise, na con­cep­ção que se tem sobre Deus.

Por um lado, em Job rejeita-se um sistema de pensa­mento religioso: as posições moralistas e tradicionais da equivalência entre o sofrimento de uma pessoa e algum pecado por ela cometido. É o pensamento maiorita­ria­mente defendido pelos amigos de Job, com alguns matizes de dife­rença en­tre cada um deles. Por outro lado, o pensamento religioso do livro parece aproximar-se da nova consciência de Job, de onde emergem verdades já bastante evidentes para ele, mas que o deixam ainda muito inseguro e mesmo escan­da­lizado. Mas nem to­das as suas ideias são confirmadas, após a contemplação da sabedoria (28), o discurso de Eliú (32-37) e a in­t­ervenção final de Deus. Se as teses da religiosidade tradi­cio­nal e popu­lar sofrem uma forte contestação, tam­bém as novas sensações iniciais de Job chegam ao fim algo esba­ti­das. Job empreende uma reflexão ama­du­recida e profunda.

Em suma, neste livro recusa-se que a causalidade de todo o sofri­mento deva ser atribuída, seja ao ho­mem, seja a Deus. A ética e o ciclo da vida com os seus percursos natu­rais de sofrimento e morte são dois proces­sos coexis­tentes, mas autóno­mos. Pretender misturá-los é sim­plista e inútil. A justiça e a acção de Deus não se podem medir com as re­gras de equivalência que são nor­mais em justiça distributiva. Eis um dos mais marcantes contributos do livro de Job para esta importante ques­tão do humanismo e da experiência religiosa. A sua atitude básica pe­rante o sofrimento não é de moral lega­lista, nem é pietista, nem expia­cionista. É uma atitude de corajoso acolhi­mento do real; é contemplativa e verificadora; é um caminho de sabedoria. É, por conse­guinte, um espaço de transformação de si mesmo e dos factos. É ainda acolhimento do Deus invi­sível nas experiências humanas de paraíso e de deserto (19,25-26; 1 Cor 13,12).

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