Cântico dos Cânticos

O título de Cântico dos Cânticos representa, em hebraico, uma fór­mula de superlativo; significa o mais belo dos cânticos ou o cântico maior e coincide com as duas primeiras palavras do texto. Nessa espécie de introdução, muito sumária, a autoria do livro é atri­buída a Salomão, como acontece com os Provérbios e a Sabedoria. Não sendo verosímil, tal atribuição exprime a fama de sábio que o antigo rei conservou na tradição hebraica (ver 1 Rs 5,12-14). Com este espírito condizem bem algumas conotações salomó­nicas da própria figura do amado.


GÉNERO LITERÁRIO E DIVISÃO

Apesar da grande antiguidade do tema da poesia lírica nas culturas orientais, os eruditos tendem actual­mente a situar, com bastante consenso, a origem do texto na época pós-exí­lica recente, possi­vel­mente na Palestina.

É universalmente aceite que o código utilizado para escrever o Cântico dos Cânticos é o de um epitalâmio ou cântico nupcial. Neste género literá­rio, e nesta obra em concreto, estão presentes os modelos de poesia lírica que floresceram no Próximo Oriente Antigo, tanto na Mesopotâmia como no Egipto. Talvez este último tenha servido particularmente de modelo para o autor hebraico do Cântico. Derivará ele das canções de divertimento egíp­­­c­­­ias? Teodoro de Mopsuéstia tinha alguma razão quando o descrevia como encenação literária das núpcias de Salomão com uma filha do faraó?

Na literatura mesopotâmica temos um paralelo tentador: os textos reli­giosos sobre Dummuzi e Inanna, textos religiosos de comprovada utilização cultual, para simbolizar as grandes questões da fertilidade e da sexuali­dade com um casamento divino que serve de paradigma. Em que medida a dramática da sexualidade deste livro não depende daquela mentalidade hierogâmica? No folclore siro-palestinense há também um ritual de matrimónio cuja acção decorre em sete dias festivos. O núcleo central é constituído pela coroa­ção dos esposos, à semelhança de uma coroação real e sublinhado por cantos vários, exaltando a beleza física dos amantes e os ideais guerreiros do grupo. Por aqui se pode ver a subtileza de sentimentos e emoções na rela­ção amorosa, de que o homem oriental adquirira consciência e que formu­lava como uma dimensão transcendente da sua própria experiência humana. A sublimidade das vivências que integram a experiência do amor constitui, de imediato, e por si mesma, um importantíssimo conteúdo para a leitura do Cântico.

O género literário da poesia lírica, estruturada segundo o modelo estilís­tico e teatral de um epitalâmio, pode também explicar a composição literá­ria deste poema em quadros, cuja delimitação e atribuição a cada uma das duas principais personagens se torna difícil de fazer. Daí variarem tanto as opiniões sobre a divisão de um texto aparentemente muito simples.

A actual divisão em oito capítulos não significa sequer uma repar­tição do texto com maior evidência do que muitas outras já propostas. Para maior facilidade de leitura, identificaremos por “Ele” ou “Ela” a per­sona­gem que cada parte do poema parece sugerir.


TEOLOGIA E LEITURA CRISTÃ

Apesar do que dissemos acima, a lei­tura do Cântico dos Cânticos está sobretudo marcada, desde sempre ou quase, por uma transposição de sentido que faz dele uma alegoria, em que o amado é Deus ou o Messias, novo Salomão, e a amada é Israel ou a Igreja, como nova comunidade de Israel. Pode subsistir alguma dificuldade em definir quando é que começou esta leitura alegórica do Cântico. Há quem pense que tal significado já está presente no mo­mento da composição do texto, como intenção primeira do autor. Pelo menos, parece verosímil considerar que a atribuição de tal significado ale­gó­rico tenha constituído a razão prin­cipal para a inclusão definitiva deste livro no Cânon dos livros da Bíblia hebraica, no séc. I d.C..

Deste modo, o Cântico dos Cân­ticos transformou-se no principal veículo para exprimir uma antiga concepção bíblica da experiência re­ligiosa, sobre­t­­udo como uma relação amorosa com Deus. Algumas das mais conseguidas formulações ante­riores desta concepção de Deus en­contravam-se em Oseias (Os 2,4-25), em Jeremias (Jr 2,20; 31,1) e Isaías (Is 57,3-33). E assim, para além da leitura mais explí­cita na tradição ju­daica desde a antiguidade, que en­tende o Cântico dos Cânticos como uma grande alegoria messiânica, avul­ta igualmente, e com raízes bí­blicas não menos antigas, a leitura deste poema como a metáfora uni­ver­sal da relação religiosa com Deus.

O NT fez a transposição da metá­fora do esposo-esposa do AT para Cristo-Igreja (Ef 5,21-33; ver Jo 3,29; Ap 22,17). Aqui se joga uma subti­lís­sima concepção de Deus, ainda não suficientemente explorada; e aqui se encontra o essencial da leitura mís­tica e poética que o Cântico dos Cân­ticos tem rece­bido na tradição oci­dental e cristã e da qual podemos dar como exemplos maiores as leituras de São Bernardo, na Idade Média, e de São João da Cruz, na Idade Mo­derna.

Possivelmente, a grande dificul­dade na leitura do Cântico residiu no desiquilíbrio instaurado por uma espécie de totalitarismo alegórico das inter­­pretações. Só muito tarde se per­mitiu considerá-lo naquilo que ele é: epitalâmio, canto de admiração e de um grande amor entre uma mulher e um homem, onde o desejo e o corpo fazem parte do jogo de sedução e fruição. É este o sentido natural do Cântico dos Cânticos. E, porque não se teme enunciar o sentido das palavras, é que nos podemos abrir à revelação esca­tológica da presença guardada entre elas: a presença de Deus.

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