Daniel

O nome de Daniel, que em hebraico quer dizer “o meu juiz é Deus”, aparece no livro de Esdras 8,2 e em Neemias 10,7 como sendo um dos exilados que regressaram da Babilónia para a Palestina. E isso pode significar que era utilizado como nome de pessoa entre os he­breus, na época pós-exílica. No entanto, como nome de pessoa, Daniel é muito antigo no Médio Oriente e parece ter conhecido grande atractivo fora da sociedade hebraica. Por isso, o profeta Ezequiel fala de um certo Daniel, muito afa­mado pela sua piedade e sabedoria (14,14.20).

Sobre o outro Daniel, um sábio da antiguidade, que Ezequiel refere e que também é mencionado na epopeia de Aqhat (escrita antes do séc. XIII a.C. e descoberta em Ugarit), conhecemos apenas a figura de um rei que se apre­senta como um rei ideal, muito devoto e imerecidamente sofredor.


AUTOR E CONTEXTO

Nem o Daniel regressado do Exílio nem o Daniel rei, da literatura de Canaã, podem ser o autor deste livro. O nome de Daniel foi-lhe atribuído como símbolo; na verdade, parece ajustar-se bem a uma obra cujo conteúdo tinha muito a ver com a dura experiência judaica vivida no Exílio e se ligava profundamente à sabedoria representada pela antiga tradição de Israel e de toda a região de Canaã.

A situação histórica em que este livro apareceu coloca o seu autor no rei­nado de Antíoco IV, Epifânio, rei helenista da dinastia dos Selêucidas, que governava a Palestina a partir da sua capital dinástica em Antioquia. Foi este rei que tentou a morte da religião judaica e a helenização da Palestina.


GÉNERO LITERÁRIO

Nos capítulos 1 a 6, o autor serviu-se de histórias antigas que pertenciam a um género tradicional de literatura didáctica e educativa, chamado “hagadá”, então muito em voga. Daniel já era uma fi­gura exemplar nessas histórias, que tinham o objectivo de inculcar espe­rança e fé nos judeus perseguidos por Antíoco IV e assedia­dos por outros perigos. Assim como Deus protegera Daniel e os seus compa­nheiros de todos os perigos e ameaças, assim faria também com os outros judeus fiéis à lei.

O autor não tem em vista descrever factos históricos, mas apresentar histó­rias moralizadoras e edificantes, que poderiam ter um fundo ou núcleo real histórico, mas de segunda importância. Os dados internos do livro, sob o ponto de vista linguístico, histórico e teológico, obrigam-nos a datar a sua versão final por altura da morte do rei Antíoco IV, em 165 ou 164 a.C..

Por seu lado, os capítulos 7 a 12 pertencem ao género apocalíptico, tam­bém frequente naquele tempo, que apreciava a comunicação de revelações. “Apo­calipse” quer dizer, precisamente, “revelação”. Esta literatura, por con­di­ções sociais e razões de mentalidade, apreciava a pseudepigrafia. Foi um género de literatura dos mais comuns no ambiente judaico da Palestina entre o séc. II a.C. e o séc. III d.C., tempo das origens do cristianismo e do judaísmo rabínico.

A literatura apocalíptica era diferente da literatura bíblica tradi­cional, mas também continuou alguns dos seus géneros e temas mais importantes. Teve início sobretudo no interior da literatura profética do tempo do Exílio e prolongou, em grande parte, o horizonte representado pelos profetas. Por outro lado, reatou profundos laços com a antiga litera­tura sapiencial e reva­lorizou a utilização teológica das antigas mitologias de Canaã, que sempre constituíram, ao longo da Bíblia, um manancial para a criação teológica.O vigor fantástico do imaginário apocalíptico deve-se também ao facto de esta literatura procurar a interpretação profunda das antigas mitologias.


TEXTO

A complexidade e a riqueza históricas de Daniel notam-se tam­bém no facto de o texto de que actualmente dispomos nos ter sido trans­mitido em três línguas diferentes: os capítulos 1,1 a 2,41 e 8 a 12 encontram-se em hebraico; a longa secção didáctica de 2,4b a 7,28 está em aramaico; e em grego, o hino de 3,24-90 e as histórias educativas dos capítulos 13 e 14.

Os dois últimos capítulos encontravam-se, em grego, separados do livro de Daniel; foi a tradução latina da Vulgata que os juntou. Estas partes não foram reconhecidas como texto bíblico pelo judaísmo rabínico e palestinense do final do séc. I d.C.; mas o judaísmo alexandrino e o cristianismo já as consideravam como igualmente bíblicas e, por conseguinte, canónicas.

As edições da Bíblia liga­das à Reforma costumam seguir a lista oficial do judaísmo da Pales­tina; as edições católicas e ortodoxas seguem a Bíblia do cristianismo primitivo, que foi sobretudo a Bíblia em grego usada pelo judaísmo helenista. Por isso, estas secções de Daniel em grego chamam-se deuterocanónicas. Nesta edição, as partes em grego estão em itálico, para melhor serem identificadas pelos leitores.


DIVISÃO E CONTEÚDO

Daniel tem quatro partes bem distintas:

I. “História de Daniel: 1,1-6,29;
II. Apocalipse de Daniel: 7,1-12,13;
III. História de Susana: 13,1-64;
IV. Daniel e os sacerdotes de Bel: 14,1-43.

Na I parte – História de Daniel (1,1-6,29) – oferece-se à espiri­tua­li­dade judaica uma série de modelos de perseverança, em con­fronto com nor­mas de vida moral e religiosa do am­biente, por vezes, agressivo.

Na II parte (7,1-12,13) exprime-se uma espiritualidade de espe­rança face às mais difíceis ameaças. As perspectivas de escatologia indi­vidual dão um passo significativo neste livro com a ideia da ressur­reição dos mortos (12), aspecto em que a antropologia do AT era menos explícita. A III e IV partes são também independentes uma da outra.


TEOLOGIA E LEITURA CRISTÃ

O pensamento religioso de Daniel representa um dos mais vincados elos de ligação entre o Antigo e o Novo Testamento e mostra que entre ambos existe uma profunda continuidade de ideias. Com o seu texto bem inserido no contexto do pensamento apocalíptico, este livro exprime uma profunda consciência de que Deus preside e governa a História dos homens e dos povos, como garantia contra as injustiças e o mal. Deus aparece sobre­tudo como o supremo legislador, de quem depen­dem os passos, as etapas, os percursos e a segurança da experiência humana.

Mas é no campo das concepções messiânicas (7) que o livro de Daniel atinge um dos pontos mais representativos, com a figura de sabor trans­cen­dente e humilde que se apresenta como «um filho de homem». No NT, esse título passará a ser uma importante componente da Cristologia e vai estar presente, tanto pela letra como pelo espírito, nas moda­lidades de mes­sia­nismo que dentro dele se verificam. Quando o judaísmo do tempo de Jesus espe­rava sobretudo um Messias-rei, triunfador dos romanos, Jesus apresentou-se como um Messias-Servo sofredor, na mais profunda huma­nidade, e como Messias “Filho do Homem” vindo do Céu (7,13; Mt 26,64; Mc 14,61-64).

O Apocalipse de João torna-se quase o espelho neotestamentário do livro de Daniel, na sua visão da História e da Teologia. É através da com­para­ção entre ambos que se pode apreciar a continuidade de ideias que existe entre o Antigo e o Novo Testamento.

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